quarta-feira, 22 de setembro de 2010

De perto, ninguém é normal

A vida e o cotidiano dos pacientes do João Machado.
Por Jéssica Guerra.


Entrei em um mundo diferente, as rampas vistas de cima parecem mais compridas do que quando estávamos lá embaixo. Deve ser psicológico, mas o caminho de dentro para fora do Hospital Psiquiátrico João Machado parece mais longo do que o caminho de fora para dentro. Através da recepção vejo ao longe cinco pessoas vestidas com jalecos brancos; enfermeiros, médicos, auxiliares. Pessoas que convivem com o mundo interior do hospital e através de suas profissões partilham as angústias de pessoas vindas de diversos lugares, com histórias totalmente diferentes, mas com uma coisa em comum: o transtorno mental.

Da recepção para o outro lado, que dava início aos leitos dos pacientes, parecia haver algo com um muro de Berlim invisível no hall que divide os dois espaços; recepção e enfermaria. Apresento-me à secretária e agendo uma entrevista com a Assessora de Recursos Humanos do Hospital João Machado. Dia seguinte às 9h da manhã, está marcada a nossa entrevista que revelará um pouco dos sonhos, angústias, medos, sentimentos e todas as coisas que nos fazem humanos, dos protagonistas da nossa reportagem.

“Muitas vezes eles não conseguem expressar o que estão sentindo e isso é angustiante. Por manifestarem idéias desconexas, isso não quer dizer que não exista verdade no que eles dizem, existe sim uma verdade transmitida através de códigos que muitas vezes não conseguimos compreendê-los. Para isso, a arte encurta os caminhos”, diz Silvia Cunha, a assessora de recursos humanos. Também nesse contexto, a arte faz o seu papel revitalizador, funcionando como ponte entre os pacientes e qualquer observador que se depare com alguma das manifestações realizadas por aqueles.

Os quase 150 pacientes do João Machado realizam confecções de quadros e pinturas, caminham pelo Parque das Dunas, praticam esportes e realizam trabalhos em grupos. “Graças à luta anti-manicomial [processo de discussão e transformação dos serviços psiquiátricos, que teve início em 1987] os pacientes com algum transtorno mental recebem outros tipos de tratamento”, explica Silvia.

Antes da reforma, os pacientes eram tratados com violência e agressividade. Eram expostos a choques, uso indiscriminado de medicamentos, isolamento total da sociedade. Não havia um estudo ou uma causa direcionada à melhora da qualidade de vida de pacientes dos hospitais psiquiátricos. Atualmente, embora ainda seja praticada, inclusive no João Machado, a internação e o abandono de uma pessoa com transtorno mental é algo grotesco e obsoleto. O problema é que há negligência de alguns profissionais da área da saúde, que antes de consultar e atentar às queixas de pessoas com distúrbios mentais já as encaminham logo para o João Machado, e, além disso existe também o desconhecimento da família do paciente no que diz respeito de conduzi-los a locais apropriados.

“A sociedade precisa entender de uma vez por todas que os manicômios têm de ser substituídos. A reforma psiquiátrica no Brasil é modelo para o mundo por mais que a Reforma Psiquiátrica Italiana tenha sido a nossa inspiração. Temos os Caps, as residências terapêuticas, os hospitais dias”, diz Breno Lincoln, estudante de Psicologia da Universidade Federal de Campina Grande. “Lá os pacientes fazem seu tratamento, têm espaço para artes e para expor seus sentimentos, mas ao final do dia voltam para casa, para a sociedade, para colher os frutos que foram plantados”, completa Liva Guerra, estudante de Enfermagem da UFRN.

No processo de instauração da Reforma Psiquiátrica, foram criados os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) visando substituir os hospitais psiquiátricos no Brasil, nesse mesmo contexto tiveram início os hospitais dias como uma nova possibilidade de clínicas de tratamentos para a promoção e inserção social dos pacientes através do acesso ao trabalho e ao lazer. Além desses dois, existem diversas outras redes de assistência ao paciente que ainda precisam ser instauradas em Natal: os lares abrigados, que são unidades em áreas externas do hospital geral onde os pacientes são responsáveis pela limpeza e preparo de refeições enquanto recebem medicamentos e tratamentos adequados, esses são importantíssimos para o abrigo de pacientes que perderam o contato com a família, e, os centros de convivência que funcionam como unidades para mostras, exposições e discussões de projetos, filmes e quadros, funcionando como uma unidade de ligação entre o paciente e a cultura e o lazer.

Nesse caminho e com a ajuda da família, os pacientes podem fazer parte da sociedade e contribuir para o crescimento dessa. O estado do Rio Grande do Norte tem 30 Caps. “11 centros do tipo 1 (atendem pacientes com transtornos mentais em localidades com 20 a 70 mil habitantes), 11 do tipo 2 (atendem pacientes com transtornos mentais em áreas com 70 a 200 mil habitantes), um do tipo 3 (atende pacientes com transtornos mentais em regiões com mais de 200 mil habitantes), e quatro são do tipo CAPS AD (atende pacientes com problemas decorrentes do uso ou abuso de álcool e outras drogas) além de três Residências Terapêuticas”, esses são os dados disponíveis no site do Governo do Estado. Porém, na realidade nós sabemos que a vida das pessoas com algum transtorno mental não é tão bonita assim. Por exemplo, aqui em Natal os Centros de Assistência Psicossocial não são suficientes para abranger todo o município.
SAÚDE MENTAL

A Saúde Mental é dividida em dois termos: neurose e psicose. A primeira refere-se ao indivíduo que sofre de distúrbio emocional cuja característica principal é a ansiedade, nela não se observam grandes distorções da realidade externa, já que a segunda diz respeito à pessoa que sofre de distúrbios manifestados em acessos e alternados entre excitação psíquica e depressão psíquica. Segundo Freud, todos nós pertencemos à primeira categoria, já que cada um de nós tem neurose por algum fator específico: neurose por limpeza, por manias, por métodos, pelo fato de ser homossexual.

Saúde Mental (SM) é tão importante que é uma matéria obrigatória na maioria dos cursos da área de saúde. “O estágio feito no JM (João Machado) através da matéria de SM mudou completamente o modo como eu via os ditos loucos. Antes eu sentia medo. Loucura, para mim, caminhava perto da agressividade. Hoje eu sei que os loucos não são loucos 24 horas por dia, assim como nós também não somos “normais” sempre”, diz Liva Guerra, estudante do Curso de Enfermagem da UFRN. “A fronteira entre o normal e o patológico é tênue, diversos foram os exemplos de loucuras vistas na disciplina de Saúde Mental e Atenção Psicossocial I: Estamira, Profeta Gentileza, Arthur Bispo do Rosário. Eu me pergunto, depois disso, até que ponto somos normais”, completa Breno Lincoln.

Segundo Liva, a matéria de SM é muito importante já que “abre a mente e mostra que o ser humano merece carinho e respeito independente da situação. Os estudantes e futuros profissionais devem lutar contra o preconceito”. Além de um pequeno conhecimento sobre essa área, todos, e principalmente os familiares de um paciente com algum transtorno mental, deveriam também inserir-se mais no tratamento e nas atividades desenvolvidas em oficinas. “A participação dos familiares é de suma importância no tratamento, devemos optar pela humanização da saúde e da sociedade e mudar essa concepção hospitalocêntrica e institucional”, diz Breno. “Atualmente um paciente com distúrbio mental precisa lutar contra dois gigantes todos os dias: a doença e o preconceito”.

A concepção pré-estabelecida de algo sobre o qual não se tem conhecimento é algo comum na nossa sociedade, muitos atribuem valores oriundos de outras pessoas sem ao menos conviver com a situação. “A loucura não pode ser generalizada, cada paciente a expressa de uma forma, é interessante ouvir a história de vida de cada um deles”, explica Liva, “louco é uma palavra muito utilizada hoje em dia, inclusive para uma festa se ela tiver sido agradável. Eu penso que a palavra não deve ser usada de maneira pejorativa ou ofensiva, mas seu uso por si próprio já se tornou algo cultural na nossa sociedade e não existe muito problema nisso, até porque a luta anti-manicomial vai muito além. No mais, precisamos de respeito, sempre!”

“De perto ninguém é normal”, afirma Breno, “e sei que a mudança de concepção é o grande avanço, dessa forma eu penso que todo curso de saúde e de humanas deveriam pagar uma cadeira de saúde mental”. O estudante termina o depoimento citando uma frase do Profeta Gentileza, que era tido como um membro da loucura: “O amor não possui só um r e sim 3r, amorrr. Amor com 1r é somente amor ligado a matéria!”. Breno acha essa citação fascinante. E nós também.

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