domingo, 12 de setembro de 2010

Domingo Dia de Baralho

Domingo. Dia de baralho. Não que houvesse um dia específico para isso já que eles jogavam todos os dias da semana e encontravam-se todos os dias no mesmo lugar na mesma hora mas é que o domingo tinha uma face assim mais receptiva aos jogos talvez pelo silêncio, pela falta de pessoas nas  ruas e além do mais um jogo exige um quê de concentração e silêncio e falta de pessoas e domingo era um dia que parecia ser feito para isso e pronto. Vejam só vocês e naquele domingo em especial estavam eles apostando o dobro do que normalmente apostariam em um jogo qualquer. Talvez por ser domingo mesmo ou talvez também pelo fato da sexta-feira de dois dias anteriores ter caído no quinto dia útil do mês, então, ainda sobrara uns trocados do último salário após pagar a conta de luz de telefone de gás de água de pensão alimentícia e todas essas coisas que a gente paga.

Quatro horas da tarde é o ideal, então, o sol está baixando e as pessoas estão preocupadas em vestirem-se para a missa das seis. Quatro elementos sentados em quatro banquinhos ao redor de uma mesinha central. O primeiro, avô de três netos pai de quatro filhos, gostava de café, do calor da cidade onde nascera e do sorriso da filha caçula, não gostava do vizinho da frente, do barulho da igreja da esquina e do jeito folgado do namorado da filha caçula. O segundo, pai de um filho, gostava dos sorrisos de todas as mulheres que o cruzassem a um raio de distância de 10m, de pão com mortadela e do mar, não gostava do vizinho do lado, de pagar pensão a sua ex-mulher que cria o filho adquirido em aventura inconseqüente e não gostava também daqueles malditos gatos que insistem em invadir a sua casa. O terceiro, solteiro, gostava de vinho de qualidade, de escovar os dentes oito vezes por dia e de rapazes mas isso era segredo, não gostava da sua mania de mexer a perna esquerda enquanto jogava, do vizinho do vizinho de trás e não gostava também de usar cintos. O quarto, solteiro, gostava da sua namorada, da namorada do vizinho e da namorada do irmão mais velho e não gostava nem um pouco dele mesmo, nem do seu vizinho e muito menos do seu irmão mais velho.
Estavam concentrados no jogo quando uma senhora se aproxima.
- Boa tarde! - eles mal desviam o olhar. - boa tarde, gente! então, hoje estamos aqui pelo bairro, vocês já sabem em quem votar nessas eleições? é porque o Pastor Smart está se candidatando a deputado esse ano e então eu queria dizer que ele tem projeto para jovens, crianças, adultos, idosos, ou seja, para todo mundo - eles continuam a mal desviar o olhar - aceitem esses santinhos aqui e se não tiverem outra opção de voto, dêem uma força para a gente! eu acredito no Pastor porque ele é um homem de deus e tá tão difícil acreditar nesses políticos hoje em dia. são tantas promessas, não são? pensem bem! o Pastor tem deus no coração e eu também, deus esteja conosco! boa tarde!

Estavam novamente concentrados no jogo quando o quinto elemento masculino do dia se aproxima, desconhecido.
- Boa tarde! - o quinto elemento masculino do dia chegou discreto como feriado desconhecido-inesperado que a gente só sabe que existe no dia. aqueles feriados que tem o nome de um santo que a gente nunca ouviu falar, ou ouviu falar e esqueceu. - minha mulher fez cateterismo, sabe? aquilo no coração e o médico a proibiu de cozinhar qualquer coisa, imagina ficar longe de fogo, como pode? e agora como ela vai fazer a nossa cocada? ela sem fazer e eu sem vender, triste situação a que eu cheguei.

Pela primeira vez desde o inicio do jogo eles desviaram o olhar e o quinto elemento continuou – veja só como é a vida, eu sou do interior e quando criança a gente brincava de gritar com as pessoas que usavam esses óculos aqui, meio grossos assim qual é o nome? isso, a gente gritava fundo de garrafa e olha só onde estou hoje; usando um fundo de garrafa! e ainda por cima não vejo quase nada, preciso trocá-los! vou ao médico porque percebi quando acordei ontem de manhã, eu estava sem óculos porque estava dormindo, lógico! não se dorme de óculos, né? então, eu estava assim  – tira os óculos-  e não via nada aliás não vejo nada, aí eu coloco assim- coloca os óculos- e não vejo quase nada também, melhora um pouco apenas. – aproveitando a quase atenção dos outros elementos, o quinto como quem não quer nada toca em um banquinho vazio ao lado e pergunta – tem alguém nesse banco, isso aí no centro é uma pessoa? – sentou-se - não, é uma mesa, né? eu percebi!
- Toma 1 real! - disse o terceiro elemento, o mais sensível e portanto o primeiro a sensibilizar-se com toda aquela história.
- Opa! mas tá vendo como deus é bom! deus é muito bom, cara... e também dia desses eu estava em cima de uma caminhonete daquelas antigas sabe e meu olho de vidro, o esquerdo, saltou assim na mesma hora em que o carro saltou porque passou em um quebra-molas e parece história de terror dita assim, né? mas foi verdade! o pessoal daqui do bairro sabe que eu não minto, sabem que eu sempre fui trabalhador sempre gostei de levantar cedo e agora eu não sei como vai ser a minha vida sem vender cocada, sem minha mulher poder chegar perto de fogo, o médico disse que ela não poderia. alguém está me ouvindo?
- Não! – disse o primeiro elemento, o avô de três netos pai de quatro filhos.
- Mas olha só, você não é maria mas é cheia de graça e por falar em maria deus é bom, espera que deus é bom e se levantou tateando o ar, caminhando em direção à rua deserta.
- Como pode alguém sair de casa nessas condições? - perguntou o segundo elemento, o que gostava de ver o mar. - e continuaram o jogo!

E os quatro elementos jogadores pensaram ao mesmo tempo que deus era um camarada muito ocupado, olha só quanta gente esperando nele; a mocinha do pastor, o mocinho da cocada, e quantos ainda hão? os quatro elementos jogadores pensaram que esperar por deus talvez fosse um pouco disso: sentar em um banquinho no meio de uma rua numa tarde de domingo em uma cidade pacata porém com uma diferença; sem mesa, cartas de baralho ou companhia. é, esperar deus talvez seja isso mesmo: sentar em um banquinho no meio de uma rua numa tarde de domingo em uma cidade pacata, e sozinho.

Nenhum comentário: