domingo, 12 de setembro de 2010

(des)ilusão

Ele abriu a janela e pôde sentir o calor do sol a esquentar e pintar de leve os seus pêlos, pintando assim um pouco de um dourado vivo brilhante e tornando-os dessa forma mais vivos, mais bonitos, eles até brilham, vejam só! e esquentam, esquentam. e os passarinhos cantam um canto bonito e voam através de um lindo jardim de flores amarelas, azuis, vermelhas, com rosas margaridas mini-pés cajueiros pinheiros pingos dourados orquídeas violetas e os tais animaizinhos simpáticos e voadores trazem para nós e para Ele jornais em seus bicos finos, como faziam os antigos pombos-correios, jornais com as boas (as boas, mesmo! somente boas) novas dos nossos dias que são tantos dias, cada um particular, cada um plural! e nas páginas as matérias felizes do médico que largou a vida para dedicar-se às crianças aidéticas na África, o pedreiro que bateu sozinho na megasena acumulada, o mocinho que se jogou ao mar com tubarões para salvar a namorada e espera! pára! não é nada disso! o verdadeiro dia não começou bem assim tão bom, para falar a verdade começou bem bem mal, como um dia verdadeiro. ah! Ele abriu a janela e pôde sentir o frio que fazia lá fora, frio pesado. o sol tímido escondido atrás de uma névoa branca, enorme, que não se podia distinguir se poeira, poluição ou nevoeiro ou os três juntos, quem sabe. mas esse será o nosso verdadeiro dia agora, esqueça o sol, as borboletas, o calor dourado, esqueça os passarinhos, esses já pressentiram a presença da chuva e estão escondidos em outras histórias. os jornais, porém, ainda permanecem e nos trazem ao invés de boas novas, más velhas. aquelas mesmas de sempre do político que desviou dinheiro público, o pai que estuprou a filha e logo após matou a família inteira, o médico que cometeu um erro gravíssimo ao diagnosticar um paciente cardíaco em estado terminal alegando ser esse apenas mais uma vítima da última virose da vez. é, Ele abriu a janela e se deu conta de que não havia jardim algum, os vizinhos desse planeta terra já fizeram o favor de destruir quase todos e se há lixo no mar por que não haveria de ter no lugar onde deveria crescer o meu jardim? e por falar em crescimento uma coisa o estressa profundamente: o fato de crescemos agora sempre para cima. já percebeu que não se vive mais em grandes casas com jardins? é, triste o momento em que quisermos imitar os americanos inclusive na sua arquitetura econômica e amontoadora de "apertamentos". Ele abriu a janela e tornou a fechá-la, deu meia-volta e pôde ver seu hamster em cima da estante de livros lidos e não lidos, filmes vistos e não vistos. dormindo de novo? como deve ser a vida de seus primos, hein? não muito diferente, a vida de um rato correndo por buracos e esgotos e excrementos e odores não deve ser muito distante da vida nessa cidade, não é? abriu a porta branca de fechadura difícil, preciso trocar isso urgentemente! atravessou o corredor gritante de lembranças, primeira à direita e cozinha, cozinha algo para mim, mãe? mas onde está a minha mãe, não posso esquecer de ligar para ela, no final-de-semana eu ligo sem falta. e para o café da manhã ainda resta o café de ontem, frio e amargo nos dois sentidos, liga a televisão no jornal da primeira edição matinal e enquanto calça seus sapatos para mais um dia de rato recebe novamente uma enxurrada de más novas. o pai que matou a filha que matou o marido que matou o primo que matou o cachorro e chega, alguém desliga a tv? mas quem? então certo, eu mesmo o faço. hora de ir para o trabalho, abre outra porta de fechadura difícil, preciso trocá-la imediatamente também mas não sem antes lembrar de regar a planta da sala de entrada, a coitada não vê água há dias e que é isso, não faz mal, é artificial! ri de si mesmo, que grande bobo! descendo a escada em forma de caracol simultaneamente se recorda vagamente de uma história que diz que plantas em ambientes fechados fazem mal, mas não consegue se lembrar o porquê e essas coisas sem porquês não validam muito o resto das coisas ou validam sim, validam tudo. abre o portão, que frio, inspira forte, respira o ar pitoresco daquela cidade bueiro e de repente sente saudades. por onde será que ele anda? com que pés será que ele anda? em que pés ele se enrosca? uma vontade de ligar assim sem mais nem menos, sem nenhum motivo aparente e falar muito ou ouvir muito ou sentir muito mas já faz tanto tempo! mas já faz tanto tempo e ainda sonha com ele, como pode? loucura! e além do mais nem sei mais o número do telefone, aliás saber eu sei, impossível esquecer depois de tantas ligações de bom dia boa tarde boa noite meu leãozinho. ah, o comum dos mortais é esse eterno desencontro de todos nós e que ônibus é esse? estou no transporte certo? motorista, esse ônibus passa na rua do espelho? que sorte! ônibus certo. que azar! mais um café amargo ao chegar ao trabalho, amargo nos dois sentidos, e esse corredor imundo do prédio B não ajuda. veja que trabalho de rato.. escrever contos. alguém mais lê contos? e se os lê, duvido que esses tais leitores morem nessa cidade bueiro. sorte por essas bandas é o zé, meu comparsa antigo... fica por ali, enrola o chefe e tira o final do expediente para conversar e conversa e me envolve nas conversas sobre clima, prostituição, turismo sexual, futebol, adriana calcanhoto, almodóvar, frida kahlo, freud, nietzsche, van gogh e outros incompreendidos, a luta manicomial, a loucura, a cidade onde seus pais nasceram, as ideologias, o paradigma dominante, a representação de um animal de estimação no âmbito familiar e me dá vontade de ser feliz ao vê o zé interligar assuntos tão distantes numa mesma tarde. e o expediente finalmente chega ao fim, são 19h- a hora da coragem. cartão telefônico na mão, coração disparado e pressão no braço esquerdo apertado, daquele tipo de pressão que a gente só se dá conta que está fazendo em si mesmo quando se dá conta mesmo. o telefone do outro lado da linha só fazia chamar logo agora que ele havia decidido ligar, aliás eram 19h e:
- Alô? - era a voz dele, era de novo aquele tom grave de voz masculina percorrendo seus sentidos, que saudades desse tom dizendo no tom certo te amo que te amo que te amo.
- Alô, Jeff! Sou eu, o Luca! - silêncio... silêncio... silêncio...
- Luca? Oi cara, quanto tempo, velho! Tudo bem com você? - ele e aquela linda mania de querer saber, verdadeiramente, se tudo estava bem.
- Bem, Jeff, ótimo! - mentiu Luca na frase mais repetida e mentirosa de que se tem notícia - então, sabe o que é... eu estava regando a planta dia desses e o zé, se lembra do zé que trabalha comigo? assim ele me ligou na hora dizendo que você estava vendendo um imóvel e sabe eu estava querendo dar uma olhada até porque estou com um dinheiro sobrando d'uns projetos aí, é um apartamento? 
- Não, é uma casa enorme com um lindo jardim.
- Um jardim?
- É.
- Um jardim... olha, eu menti quando disse que estava bem não estou nada bem não estou nada bem  e também não tenho porcaria de dinheiro nenhum eu só tenho saudade e muita e isso estava guardadinho escondido dentro de mim até escutar o zé falar o seu nome e me falar que você tinha um imóvel para vender e nesse momento o que estava guardadinho escondido dentro de mim explodiu saltou para fora e para dentro e eu lembrei do que a gente foi um dia e me deu uma vontade enorme de te encontrar por acaso assim em qualquer esquina dessas e eu esperei pelo acaso até desistir já que esse tal acaso não nos tem ajudado e por isso resolvi ligar e te dizer que tenho pensado em você e desde então não tenho mais regado as plantas e também não sei o porquê fazia isso antes já que elas são artificiais e me ocorrem sonhos melhores por esses dias porque os sonho em você e eu tenho sonhado com o sol, cara! e veja só você, devo estar louco de sonhar com o sol em uma cidade bueiro como essa que a gente vive. - respira - ou devo estar louco ou devo te amar demais, cara!
-Luca, eu também quero te dizer que também senti a sua falta todo esse tempo e por isso falei pro zé que estava vendendo um imóvel na esperança dele te dizer algo sobre porque eu sei o quanto você gosta de grandes casas com jardins e acha todo esse crescimento vertical em apartamentos a coisa mais babaca desse mundo e.

E espera! pára! a verdadeira história não terminou bem assim tão feliz.

- respira - ou devo estar louco ou devo te amar demais, cara!
- Luca, não dá. no começo eu até sentia algo assim por você mas o tempo passou foi passando e hoje eu sei que acabei confundindo um pouco as coisas naquela época e o que eu senti não seria suficiente para tentar  nada você sabe que não envolvia somente a gente envolvia outras pessoas e por sorte eu percebi há tempo que não deveríamos levar mais aquilo tudo adiante. - respira - te falei isso assim porque senti que era mais do que necessário desculpa se aparentei ser ríspido e eu casei luca estou casado com uma mulher maravilhosa e é tudo mais fácil. próxima semana é o batismo da minha filhinha.

Desligou! desligou e levou a vida adiante e talvez a versão dura dessas coisas seja a versão ocorrida, verdadeiramente, até porque o comum dos mortais são esses nossos desencontros. MAS, inventa um final bonitinho inventa algo bem happy end inventa bem inventado uma história menos clarisse lispector - 'nem no pensamento vale o que apenas seria' - e menos caio fernando abreu - 'de qualquer forma desespero, e agradável'.

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